16 julho 2010

Eu deixarei que morra em mim
o desejo de amar os teus olhos que são doces 
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto 
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida 
E eu sinto que em meu gesto 
existe o teu gesto e em minha voz a tua voz 
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado 
Quero só que surjas em mim 
como a fé nos desesperados 
Para que eu possa levar 
uma gota de orvalho 
nesta terra amaldiçoada 
Que ficou sobre a minha carne 
como nódoa do passado 
Eu deixarei... 
tu irás e encostarás a tua face em outra face 
Teus dedos enlaçarão outros dedos 
e tu desabrocharás para a madrugada. 
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, 
porque eu fui o grande íntimo da noite. 
Porque eu encostei minha face na face da noite 
e ouvi a tua fala amorosa. 
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa 
suspensos no espaço. 
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. 
Eu ficarei só 
como os veleiros nos pontos silenciosos. 
Mas eu te possuirei como ninguém 
porque poderei partir. 
E todas as lamentações do mar, 
do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, 
a tua voz ausente, 
a tua voz serenizada.

13 julho 2010

Ser miserável dentre os miseráveis
Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!
Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!
Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!

Augusto dos Anjos. Vítima do Dualismo

11 julho 2010

A SEMANA FOI ASSIM


A semana? Passou que nem corisco,
somente aqui e ali deixando um risco
além do velho céu, hoje quadrado,
pelas  naves do cosmo ultrapassado.
Que pretendem os homens: descobrir
um novo mundo, onde se possa rir?
brincar de amor, jogar de ser feliz?
tirar diploma de deus-aprendiz?
(...)
É isso a espécie: um renovar aos trancos,
aos gemidos, aos cálculos e arrancos,
entre miséria e ciência, na poesia
da eternidade posta num só dia.


- Carlos Drummond de Andrade - 

Domingo com Drummond...

Enigma

Faço e ninguém me responde
esta perguntinha à-toa:
Como pode o peixe vivo
morrer dentro da Lagoa?

03 julho 2010